Por: Coletivo Político Quem
A Universidade de São Paulo não é uma exceção entre as instituições brasileiras cujas estruturas ainda carregam marcas ditatoriais profundas, muito embora disfarçadas pelo discurso mistificador da “reconciliação nacional” e da “transição democrática”. Quem se atenta para os recentes conflitos ocorridos na USP pode diagnosticar, com maior nitidez, sua incapacidade de abrigar as vozes dissonantes constituintes de todo debate minimamente democrático.
Tais conflitos, entretanto, não raro têm sido explicados por uma suposta inclinação elitista de seus alunos que, de bom grado, passariam a maior parte de seus dias alheios à cidade, encastelados num espaço privilegiado em que o desrespeito da ordem seria permitido. Mas, perguntemos: Quem é o verdadeiro autor desta crítica?
Resultado de um projeto levado a cabo pelo regime civil-militar, Quem transferiu as antigas faculdades e institutos do centro da cidade para uma região mais afastada o fez, justamente, para garantir a remoção dos focos de protestos estudantis e a desmobilização de grupos políticos organizados. Não é por acaso, pois, que a localização atual da universidade contribui para que qualquer manifestação no interior da USP dificilmente encontre ressonância em outros setores da população e pareça, quase sempre, despropositada. A crítica de hoje é, ainda, um eco da estratégia ditatorial.
Essa política de isolamento, que começou no fim dos anos sessenta, seria largamente aprofundada pelas últimas gestões – e, note-se, por meio de decisões que careceram do devido debate democrático. Tal é o caso não apenas do convênio estabelecido entre a reitoria e a Polícia Militar, mas também da construção, em 1997, de muros em torno do campus –, que, até hoje, restringem o acesso da população sem vínculo acadêmico. Mais recentemente, reitoria e governo estadual mantiveram posição contrária à instalação, dentro do campus, de uma estação de metrô. A segregação da USP não nasceu, portanto, de uma pretensa demanda interna de alunos e pesquisadores, que se crêem “cidadãos privilegiados”, mas de uma manobra política e de uma imposição estratégica que, surgidas no passado ditatorial, têm se perpetuado nas instâncias de poder contemporâneas.
Assim, no debate sobre autonomia universitária, aquele que condena os alunos pelo usufruto de privilégios materializados num campus infenso às mazelas sofridas pelo restante da população acaba por confundir um isolamento, imposto à comunidade acadêmica por forças que lhe são estranhas, com as demandas internas pela independência necessária para definir os rumos do ensino e da pesquisa. Independência que, caso existisse, traria à comunidade a possibilidade mesma de se recusar a dar as costas para sua cidade.
E não é por outro motivo que uma das principais bandeiras do movimento estudantil se refere, justamente, à democratização da estrutura de poder na universidade. Quando se afirma que o atual reitor não representa os anseios de professores, alunos e funcionários, não se quer apenas explicitar a discrepância ideológica entre João Grandino Rodas e os setores progressistas da USP. Trata-se, sobretudo, de denunciar, entre outras coisas, o caráter antidemocrático do processo de escolha do reitor. Ao contrário do que ocorre em algumas importantes universidades brasileiras, como a PUC-SP, a UFSC, a UERJ e a UERGS –, nas quais vigoram eleições diretas em que estudantes, funcionários e professores têm direito a votar nos candidatos à reitoria –, na USP, a quase totalidade da comunidade acadêmica é alijada desse processo, que é conduzido basicamente pelos professores titulares.
Resta analisar um terceiro aspecto do problema. Se os alunos insistem, com razão, que a segurança do campus depende de outras medidas que vão além da militarização do espaço público – como iluminação mais intensa e circulação mais frequente de ônibus e pessoas –, não estão menos acertados ao questionar a natureza de uma polícia militar que, supostamente, deve garantir a segurança de toda a população.
Ainda sob a denominação de Guarda Municipal Permanente, as polícias militares foram criadas no período regencial com o principal objetivo de conter sublevações populares, atuando, deste modo, como a força repressiva do Estado por excelência. Foi precisamente nessa direção que ela foi reestruturada no final da década de sessenta, como forma de aprimorar seu caráter repressivo no interior de uma sociedade politicamente polarizada.
É essa polícia, filha legítima de nosso regime autoritário – inclusive no que diz respeito aos quadros que a compõem e ao estatuto que a rege –, que não apenas perpetuou, mas aprimorou os mesmos métodos violentos de repressão adotados durante o período de arbítrio. São conhecidos os dados que conferem ao Brasil o status de único país da América Latina no qual o número de casos de tortura praticada por agentes do Estado aumentou após a dita “transição democrática”.
Quem não condena apenas a truculência da ação policial na USP, mas também as desocupações violentas em favelas, os despejos forçados de sem-tetos e sem-terras, as abordagens humilhantes a moradores de rua. Quando se discute a atuação da polícia militar, é só uma pergunta que deve ser colocada: Quem quer garantir a segurança de Quem?
Disse o governador Geraldo Alckmin que deveriam os alunos ter aulas de democracia. Eis, pois, o que até agora se tem tentado lhes ensinar: faz-se democracia com um reitor não respaldado pelo voto direto, com uma universidade expulsa da cidade que lhe empresta o nome e com uma polícia que ostenta no peito uma estrela em homenagem à “Revolução de 64”. Mas há outra mensagem mais fundamental que parece nortear a grade curricular deste estranho curso. Trata-se da oposição entre liberdade e segurança.
Insiste-se sistematicamente no seguinte ponto: os estudantes da USP não seriam suficientemente maduros para entender que, em uma democracia, todo indivíduo deve abrir mão de determinadas disposições pessoais de conduta – como o uso de drogas ilícitas – em nome das decisões tomadas coletivamente. Liberdades individuais opõem-se, assim, à segurança e à paz, que só podem ser conquistadas com a aplicação irrestrita da lei, garantida pelo aparato repressor estatal.
Nada de errado haveria neste discurso caso as reivindicações estudantis em questão versassem, de fato, sobre liberdades individuais. Ocorre que, como vimos, trata-se antes de reivindicar o fortalecimento de um sujeito coletivo: luta-se não por liberdade individual, mas por liberdade política. E, aqui, oposição alguma pode ser construída entre paz e liberdade. Quem está seguro quando deve seguir regras ditadas por um representante que não escolheu? É a segurança de Quem que pode ser garantida por uma polícia que se orgulha de um golpe de Estado? Sem liberdade política, segurança não é senão a máscara da opressão.
Querem nos convencer de que o preço a pagar pela paz é a servidão de Quem tem seus direitos tolhidos por uma estrutura política autoritária; é a solidão que resta a Quem foi expulso de sua própria cidade; é a barbárie que vemos na reitoria, ocasionalmente, e nas periferias, diariamente, imposta por uma polícia incompatível com a democracia. A essa torpe tentativa de convencimento, Quem responde com o dito espinosano: “se a paz tem de possuir o nome de servidão, barbárie e solidão, nada há mais lamentável para o homem do que a paz”.
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