segunda-feira, 26 de março de 2012

Universidade Classe Mundial: paradoxos de um pensamento ao mesmo tempo neoliberal e neocolonialista


 Como é do conhecimento de todos, estamos vivendo um processo de reformulação do Regimento Geral da Pós-Graduação da USP.
Conforme declarações públicas da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, as mudanças propostas fazem-se necessárias no sentido de transformar a USP em uma Universidade Classe Mundial.
Todavia, o que nos tem inquietado a muitos, alunos e professores da USP, diz respeito à pertinência/necessidade de algumas das mudanças anunciadas, entre as quais se pode destacar:
1.                           exame de qualificação obrigatório para todos os alunos da pós-graduação, a realizar-se em até 12 meses de seu ingresso;
2.                           exclusão da possibilidade de re-apresentação do Relatório de Qualificação no caso de reprovação;
3.                           necessidade de parecer prévio por escrito, para teses de doutorado, podendo o candidato/aluno ser impedido de defender publicamente seu trabalho no caso de a maioria dos pareceres escritos indicar inaptidão à defesa;
4.                           orientador sem direito a voto nas bancas examinadoras finais.

A principal argumentação utilizada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação, para justificar tais mudanças é a referência a IES estrangeiras, as quais têm modus operandi similares ou iguais a este que se propõe hoje para o Regimento da Pós-Graduação da USP, ressaltando-se o fato de que tais Instituições são melhores ranqueadas internacionalmente que nós.
Naturalmente, não ignoramos o fato de que há muitas experiências vividas em outros lugares no mundo, no campo científico e acadêmico, passíveis de serem assimiladas por nós de forma positiva, ou seja, produzindo-se aqui, em nosso contexto social, econômico, político e geográfico, as mesmas benesses que produziram em seus lugares de origem.
Entretanto, entendemos, também, que não há um modelo universal para se produzir uma Universidade Classe Mundial e, se considerarmos as condições em que fizemos ciência no Brasil e na USP, particularmente, desde a sua fundação, podemos afirmar, sem dúvida, que somos muito mais Classe Mundial que diversas universidades melhores colocadas nos diversos ranqueamentos internacionais. Por que podemos afirmar isso? Pensemos em alguns dados/informações.

Ranking das 10 melhores universidades do mundo segundo a TIMES HIGHER EDUCATION– informações elementares
Universidade
Ano de Fundação
Orçamento Anual Recente
(valores aproximados -em bilhões de Reais)
Número
Total de Alunos
Proporção
Orçamento/Aluno per capita
(em reais)
Proporção de Docentes/Pesquisadores por Aluno
USP
1934
3
76.000
39.473,68
1/14,5
California Institute of Technology
1921
6,3[1]
22.000
286.363,60
1/1,13
Harvard University
1636
57.6[2]
21.000
2.742.857,10
1/10
University of Stanford
1891
37[3]
18.500
2.000.000,00
1/1,73
University of Oxford
1096
3[4]
20.000
150.000,00
1/ 2,35
Princeton University of London
1746
17,2[5]
12.000


Cambridge University
1209
3,4[6]
10.000
340.000,00
1/3,3
Massachussetts Institute of Technology
1861
4,8[7]**
11.000
436.363,36
1/11
Imperial College of London
1891
2[8]
14.000
142.857,14
1/12
Chicago University
1907
4,6[9]
15000
306.666,66
1/7
Califórnia University at Berkeley
1868
3,5
36.000
97.222,22
1/15
Obs.: as informações e dados acima expostos foram extraídos das páginas das respectivas universidades, disponíveis na web.
**Excluindo-se orçamento destinado ao Laboratório do MIT que tem parceria com a NASA.



Como se pode ver na tabela acima, a Universidade de Harvard,  Estados Unidos, desenvolveu sua reconhecida capacidade de produzir conhecimento ao longo de pouco mais de três séculos e com orçamentos, muito provavelmente, bem superior aos nossos. Vale lembrar que se hoje Harvard tem um orçamento anual quase vinte vezes superior ao da USP, com um número total de alunos 60% menor, há poucos anos atrás, o orçamento total da USP – 2005, por exemplo – não chegava aos 2 bilhões de reais. Entre outras coisas, pode-se notar que enquanto a USP investe menos de 40.000 por aluno, em Harvard esta conta chega ao estratosférico valor de quase 3 milhões de reais!!! Dá para comparar?
Oxford, por sua vez, tem, aparentemente, um orçamento igual ao da USP hoje, mas como a comunidade estudantil oxfordiana é 70% menor que a nossa, a universidade inglesa, com  quase mil anos de história, empenha cerca de 150.000 reais por aluno. Certamente, os seus quase dez séculos de história foram importantes na definição de suas políticas acadêmicas e, especialmente, de pesquisa. Estaremos nós querendo ser mais oxfordianos que nossos colegas ingleses? Ou será que queremos mesmo é ser mais realistas que o rei?
Entre as dez melhores do mundo, ainda segundo o ranking “Times Higher Education”, por exemplo, aquela que tem o menor investimento per capita por aluno – Califórnia University at Berkeley – empenha duas vezes e meia os valores investidos pela USP.
Apesar de a USP ter, proporcionalmente às melhores universidades do mundo, orçamentos bem mais modestos, parte da sociedade brasileira, ao contrário do que ocorre nos países que abrigam as “top 10 do mundo”, estimulada por uma visão tupiniquim de uma imprensa irresponsável, nos rotula de “burgueses gastões” .

Outro elemento importante neste debate e que não pode ser negligenciado diz respeito à hegemonia lingüística mundial da língua inglesa, ou seja, pesquisadores/cientistas anglófonos levam reconhecida vantagem em termos da reverberação internacional de seus trabalhos em relação, por exemplo, a pesquisadores/cientistas não-anglófonos.
Em sua competente análise acerca de classificações internacionais de universidades e, especialmente sobre a classificação “Xangai”[10], Hervé Théry (2010: 192) diz a esse respeito:

Outro fator de distorção é que o inglês tornou-se, na maior parte dos campos científicos, a língua internacional e que os universitários do mundo anglófono são muito mais integrados ao circuito internacional que os seus homólogos dos outros blocos culturais. Consequentemente, essa classificação das universidades favoreceu claramente os países para os quais o inglês é a língua materna.

Outra distorção apontada por Hervé Théry (2010: 191-2) quanto à classificação “Xangai”, diz respeito à subestimação clara das ciências sociais e humanas. Conforme o autor:

O lugar das ciências sociais e humanas é claramente subestimado nessa classificação, os próprios autores o reconhecem, mas eles confessam não ter encontrado, para esses campos científicos, critérios que correspondam às exigências que tinham fixado: medidas universalmente reconhecidas como válidas e livremente acessíveis na internet. Em especial, o fato de não poder dispor de uma classificação dos livros, um dos principais meios de expressão dessas ciências, prejudicou a sua inclusão correta na classificação.

Se, entretanto, insistem alguns em comparar o incomparável, uma das conclusões a que podemos chegar é a de que a USP é muito mais Classe Mundial que as dez melhores universidades do mundo, afinal de contas, conseguimos ser a melhor universidade da América Latina e estar hoje entre as 70 melhores do mundo, com pouco mais de 70 anos de história, utilizando muito menos recursos que a maioria delas e abrigando 3, 4 ou 5 vezes mais alunos que a maior parte dessas instituições.
Isto posto, não deveríamos nós ensinar a eles os nossos métodos e não o contrário?

Proposta de Novo Regimento – entre equívocos e sofismas

Em audiência pública com alunos, professores e funcionários realizada no dia 19/03 próximo passado e promovida pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação, nosso Pró-Reitor, insistindo no expediente da comparação com os outros, utilizou, em certo momento, um argumento equivocado para ilustrar suas reflexões. Segundo o mesmo, nas dez melhores universidades do mundo sequer existe defesa oral de dissertação e tese.
Considerando fundamental que assuntos de tamanha seriedade, como a revisão do Regimento Geral da Pós-Graduação, não podem ser tratados de forma especulativa, trazemos, a seguir, informações sobre defesas de dissertações e teses em cinco das dez melhores universidades do mundo. Para tanto, investigamos os procedimentos adotados por essas universidades em cursos de pós-graduação escolhidos aleatoriamente.

HARVARD UNIVERSITY

Accounting & Management

Dissertation

All students must write a dissertation.
The defense is oral and open to the public.
Students in Accounting begin research in their first year typically by working with a faculty member. By their third and fourth years, most students are launched on a solid research and publication stream. In accounting, the dissertation may take the form of three publishable papers or one longer dissertation.  Disponível em http://www.hbs.edu/doctoral/areas-of-study/accounting-management/curriculum.html.

STANFORD UNIVERSITY
Convite para a defesa oral de uma tese em Engenharia Elétrica (caso alguém se interesse, ainda dá tempo de assistir...)

PhD Oral: Vicky He Wen

Vicky He Wen, electrical engineering, "Sensing With Slow Light in Fiber Gragg Gratings.
"When: Monday, April 2, 2012. 4:30 PM.
Where: Paul G. Allen Building Annex, CISX-Auditorium (101) (Map)

Audience:
General Public
Faculty/Staff
Students
Alumni/Friends
Tags:
PhD Oral
Engineering
Sponsor:
School of Engineering


OXFORD UNIVERSITY

NOTES OF GUIDANCE FOR RESEARCH EXAMINATIONS
(D.Phil., M.Litt., MPhil/MSt in Law, M.Sc. By Research)

1.         The oral examination or viva
It is the responsibility of the internal examiner to make all the arrangements for the viva examination. Your internal examiner should normally contact you to arrange a date for your viva within a month of receiving your thesis.  If the Research Degrees Team do not receive a date for your viva within a month of sending out your thesis, they will contact your examiners.  On no account should you contact the examiners yourself except where you have to agree a date for the viva. (disponível em http://www.ox.ac.uk/students/course_guidance_supervision/graduates/forms/#d.en.7467)


CAMBRIDGE UNIVERSITY

The Oral Examination ('viva')

The oral examination need not be in Cambridge (although it is normally expected to be in the UK) but should take place in the most mutually convenient location. It should be carried out between the two examiners, and the candidate. It may include an independent chair if the degree committee has deemed it appropriate. There are no rules for its duration, but as an approximate guide, it will normally occupy at least 90 minutes and is likely to conclude within about three hours.
The oral examination should allow:
  • the candidate to defend their dissertation and clarify any matters raised by the examiners
  • the examiners to probe the candidate's knowledge in the field
  • the examiners to assure themselves that the work presented is the candidate's own and to clarify matters of any collaboration
  • the examiners to come to a definite conclusion about the outcome of the examination.
The examiners are asked not to give any direct indication of the likely outcome of the examination; this is because the official result can be confirmed only by the Student Registry. However, the general progress of the oral should give candidates a fair indication of the outcome. (disponível em http://www.admin.cam.ac.uk/students/studentregistry/exams/submission/phd/viva.html)

The University of Chicago
Departamento de Astronomia e Astrofísica

It is the responsibility of the Dissertation Committee to conduct a final oral examination. At the conclusion of the examination, the Committee will (1) accept or reject the defense of the dissertation and (2) accept the dissertation or specify the further work that will be required in order to make it acceptable.
The Dissertation - The principal requirement for the Ph.D. Degree is the presentation and defense of a dissertation describing an original piece of research that has been performed independently by the student. (disponível em http://astro.uchicago.edu/gradprogram/index.shtml#Examination)

Dadas as informações acima,

Entre os rankings internacionais e as avaliações nacionais

Na onda dos ranqueamentos internacionais, outro processo em curso na USP é o de criação de um novo sistema de avaliação da qualidade de sua pós-graduação.
Para que e a quem servem os sistemas de avaliação seja de universidades “classe mundial” ou de programas de pós-graduação?

1. No caso da avaliação da pós-graduação, o sistema Capes tem servido, entre outras coisas, para fomentar a competição entre Programas, em escala nacional. Como? Os Programas melhor classificados são aqueles que recebem mais recursos. Assim, esse sistema trabalha para manter na penumbra aqueles que apresentam maiores dificuldades; enquanto isso, os melhores têm suas receitas fortalecidas.
2. Um sistema de avaliação pautado na competição contribui, efetivamente, para “varrer” do universo da pós-graduação os Programas que não conseguem melhorar suas notas, por razões diversas, entre as quais a dificuldade em vencer os mecanismos vorazes da competição (fatores temporais – programas jovens; fatores geográficos – dificuldade em fixar professores/pesquisadores em lugares distantes dos centros econômicos mais dinâmicos do país, fatores financeiros – escassez de recursos, por exemplo).
3. Coincide, historicamente, com a instalação do sistema de avaliação da Capes uma reconhecida perda de qualidade na formação geral de pós-graduandos no Brasil. Naturalmente, não se pode atribuir única e exclusivamente à avaliação Capes algo que decorre de um sucateamento do ensino em todos os níveis no país, reinante durante décadas. Todavia, alguém quem duvida de que existe relação direta entre avaliação Capes e encurtamento de prazos na pós-graduação stricto sensu? Alguém tem dúvida de que o sistema de avaliação Capes fomentou, de forma incomensurável, o produtivismo no país? Alguém  duvida de que prazos menores e professores e alunos focados na produção-fim (ou seja, a produção por ela mesma) contribuem significativamente para piorar a qualidade da pós-graduação?

Tais inquietações me conduzem a perguntar: como se fazia a avaliação da produção na USP, por exemplo, nos anos 50, 60 e 70?
O reconhecimento nacional e internacional da USP, historicamente construído, subordinou-se, durante décadas, única e exclusivamente  à inserção social de seus formandos, graduados e pós-graduados, bem como à sua produção científica, que revolucionou diversos setores da vida social.
Todavia, na medida em que, pós anos 80, começa a ampliar-se, substancialmente, o universo da pós-graduação brasileira, “a fatia do bolo” para cada um tinha de diminuir!
É nesse contexto que assumimos uma lógica empresarial de avaliação, fundada não somente na produção, mas sobretudo e principalmente na produtividade. Paradoxalmente, enquanto o setor produtivo se flexibiliza, supera o paradigma fordista e incorpora princípios toyotistas, a vida cotidiana na universidade volta-se para a produção em massa além de tornar-se cada dia mais inflexível!
A melhor avaliação da USP foi e continua sendo feita pela sociedade brasileira, de modo geral, e paulistana, especificamente. A inserção de nossos egressos, tanto da graduação como da pós-graduação em todos os setores do mercado de trabalho, incluindo-se postos de liderança em escolas de ensino fundamental e médio, universidades, empresas de todos os ramos e governos em todas as escalas expressa a verdadeira reverberação do investimento público onde ele deve reverberar.
Por fim concluo acreditando que temos empenhado muito tempo e energia na construção de parâmetros, indicadores e relatórios de avaliação, os quais alimentam uma verdadeira esquizofrenia avaliativa nacional. Enquanto isso, nossos alunos clamam, simplesmente, por uma boa aula, por um pouco de atenção, por uma boa conversa, enfim, atividades elementares,  cada vez mais difíceis de serem desenvolvidas em um cotidiano acadêmico regido pela competição. Quanto ao tempo para a pesquisa, passou a ser um sonho de todos nós. Algo me parece estar errado.
Sem mais, despeço-me, cordialmente,


Profa. Dra. Rita de Cássia Ariza da Cruz
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP


[1] http://finance.caltech.edu/Resources
[2] http://vpf-web.harvard.edu/annualfinancial/
[3] http://facts.stanford.edu/finances.html
[4] http://www.ox.ac.uk/gazette/2006-7/supps/3_4783.pdf
[5] http://finance.princeton.edu/princeton-financial-overv/financial-facts/
[6] http://www.admin.cam.ac.uk/reporter/2011-12/weekly/6246/i.pdf
[7] http://web.mit.edu/facts/financial.html
[8] https://workspace.imperial.ac.uk/finance/Public/annual_report/annual_report_10_11.pdf
[10] Instituição Escore (2008)
1 Harvard University 100
2 Stanford University 73,7
3 University of California – Berkeley 71,4
4 University of Cambridge 70,4
5 Massachusetts Institute of Technology (MIT) 69,6
6 California Institute of Technology 65,4
7 Columbia University 62,5
8 Princeton University 58,9
9 University of Chicago 57,1
10 Oxford University 56,8
Fonte: THÉRY, Hervé. Classificação de universidades mundiais: “Xangai” e outras. estudos avançados 24 (70), 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v24n70/a12v2470.pdf.

Um comentário:

  1. Professora,

    Com o devido respeito:

    1. Todas estas IES que você menciona são particulares, com exceção de Berkeley. A USP é pública. Uma parte muito pequena dos orçamentos destas IES estrangeiras provém do estado. A maior parte do orçamento destas instituições provém de anuidades escolares, doações e dinheiro para pesquisa, etc, que não são fontes públicas. Não é o dinheiro público que financia estas universidades estrangeiras. Cadê a fonte de dados de Berkeley, professora?

    No que se refer aos seus questionamentos sobre a avaliação da CAPES:

    1. A Exma. professora acharia melhor que os piores cursos de pós recebessem mais dinheiro proporcionalmente do que os melhores?

    2. Como a Exma. Professora explica o fato de existirem programas que começaram com notas 3 ou 4 e hoje são programas com notas 5, 6 ou 7? A Exma. Professora acha ruim que os professores se esforçem para fazer uma pós-graduação de qualidade? Se a competição leva os programas a melhorarem, a Exma. Profa. acha isso ruim?

    3. Se este modelo de PG está fazendo com que a USP se torne melhor classificada no THE, este modelo é ruim? Se é ruim, quais seriam suas propostas para que este modelo fosse melhorado?

    Grato por sua atenção.

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